terça-feira, 30 de outubro de 2012

Reflexões do Poeta: críticas e conselhos aos Portugueses


O Poeta faz diversas considerações, no início e no fim dos Cantos da sua epopeia, criticando e aconselhando os Portugueses.Por um lado, refere os «grandes e gravíssimos perigos», a tormenta e o dano no mar, a guerra e o engano em terra; por outro lado, faz a apologia da expansão territorial para divulgar a Fé cristã, manifesta o seu patriotismo e exorta D. Sebastião a dar continuidade à obra grandiosa do povo português. Nas suas reflexões, há louvores e diversas queixas aos comportamentos. Se realça o valor das honras e da glória alcançadas por mérito próprio, lamenta, por exemplo, que os Portugueses nem sempre saibam aliar a força e a coragem ao saber e à eloquência, destacando a importância das Letras. Se critica os povos que não seguem o exemplo do povo português que, com atrevimento, chegou a todos os cantos do Mundo, não deixa de queixar-se de todos aqueles que pretendem alcançar a imortalidade, dizendo-lhes que a cobiça, a ambição e a tirania são honras vãs que não dão verdadeiro valor ao homem. Daí, também, lamentar a importância atribuída ao dinheiro, fonte de corrupção e de traições. Lembrando o seu «honesto estudo», «longa experiência» e «engenho», «Cousas que juntas se acham raramente», confessa estar cansado de «cantar a gente surda e endurecida» que não reconhecia nem incentivava as suas qualidades artísticas.

As reflexões que merecem destaque:


Canto I (est. 105-106); p.39


As traições e os perigos a que os navegadores estão sujeitos justificam este desabafo do Poeta.
Não será por acaso que esta reflexão surge no final do Canto I, quando o herói ainda tem um longo e penoso percurso a percorrer.
Ver-se-á, no Canto X, até onde a ousadia, a coragem e o desejo de ir sempre mais além pode levar o «bicho da terra tão pequeno», tão dependente da fragilidade da sua condição humana.

Canto V (est. 92-100); pp.74-75


O Poeta começa por mostrar como o canto, o louvor, incita à realização dos feitos; dá exemplos do apreço dos Antigos pelos seus poetas, bem como da importância dada ao conhecimento e à cultura, que levava a que as armas não fossem incompatíveis com o saber.
Não é, infelizmente, o que se passa com os portugueses: não se pode amar o que não se conhece, e a falta de cultura dos heróis nacionais é responsável pela indiferença que manifestam pela divulgação dos seus feitos. Apesar disso, o Poeta, movido pelo amor da pátria, reitera o seu propósito de continuar a engrandecer, com os seus versos, as «grandes obras» realizadas.
Manifesta, desta forma, a vertente pedagógica da sua epopeia, na defesa da realização plena do Homem, em todas as suas capacidades.

Canto VI (est. 95-99); p.77


Continuando a exercer a sua função pedagógica, o Poeta defende um novo conceito de nobreza, espelho do modelo renascentista: a fama e a imortalidade, o prestígio e o poder adquirem-se pelo esforço - na batalha ou enfrentando os elementos, sacrificando o corpo e sofrendo pela perda dos companheiros; não se é nobre por herança, permanecendo no luxo e na ociosidade, nem pela concessão de favores se deve alcançar lugar de relevo.

Canto VII (est. 3-14); pp.78-79)


Percorrido tão difícil caminho, é momento para que, na chegada a Calecut, o Poeta faça novo louvor aos Portugueses. Exalta, então, o seu espírito de Cruzada, a incansável divulgação da Fé, por África, Ásia, América, «E, se mais mundos houvera, lá chegara», assim inserindo a viagem à Índia na missão transcendente que assumiram e que é marca da sua identidade nacional. Por oposição, critica duramente as outras nações europeias - os «Alemães, soberbo gado», o «duro inglês», o «Galo indigno», os italianos que, «em delícias, / Que o vil ócio no mundo traz consigo, / Gastam as vidas» - por não seguirem o seu exemplo, no combate aos infiéis.

Canto VII (est. 78-87); pp.81-82)


Numa reflexão de tom marcadamente autobiográfico, o Poeta exprime um estado de espírito bem diferente daquele que o caracterizava, no Canto I, na Invocação às Tágides - «cego, […] insano e temerário», percorre um caminho «árduo, longo e vário», e precisa de auxílio porque, segundo diz, teme que o barco da sua vida e da sua obra não chegue a bom porto. Uma vida que tem sido cheia de adversidades, que enumera: a pobreza, a desilusão, perigos do mar e da guerra, «Nũa mão sempre a espada e noutra a pena;». Como não ver neste retrato a intenção de espelhar o modelo de virtude enunciado em momentos anteriores?
Em retribuição, recebe novas contrariedades - de novo a crítica aos contemporâneos, e o alerta, para inevitável inibição do surgimento de outros poetas, em consequência de tais exemplos.
Mas a crítica aumenta de tom na parte final, quando são enumerados aqueles que nunca cantará e que, implicitamente, denuncia abundarem na sociedade do seu tempo: os ambiciosos, que sobrepõem os seus interesses aos do «bem comum e do seu Rei», os dissimulados, os exploradores do povo, que não defendem «que se pague o suor da servil gente».
No final, retoma à definição do seu herói - o que arrisca a vida «por seu Deus, por seu Rei».

Canto VIII (est. 96-99); p.84


A propósito da narração do suborno do Catual e das suas exigências aos navegadores, são agora enumerados os efeitos perniciosos do ouro - provoca derrotas, faz dos amigos traidores, mancha o que há de mais puro, deturpa o conhecimento e a consciência; os textos e as leis são por ele condicionados; está na origem de difamações, da tirania dos Reis, corrompe até os sacerdotes, sob aparência de virtude.
Retoma a função pedagógica do seu canto, o Poeta aponta um dos males da sociedade sua contemporânea, orientada por valores materialistas.

Canto X (est. 145-156); p.99-100


Os últimos versos de «Os Lusíadas» revelam sentimentos contraditórios - desalento, orgulho, esperança.
«No mais, Musa, no mais […]» o Poeta recusa continuar o seu canto, não por cansaço, mas por desânimo. O seu desalento advém de constatar que canta para «gente surda e endurecida […] metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Dhũa austera, apagada e vil tristeza.». É a imagem que nos dá do Portugal do seu tempo. Por contrate, o orgulho naqueles que continuam dispostos a lutar pela grandeza do passado e a esperança de que o Rei saiba estimular e aproveitar essas energias latentes para dar continuidade à glorificação do «peito ilustre lusitano» e dar matéria a novo canto. O poema encerra, pois, com uma mensagem que abarca o passado, o presente e o futuro. A glória do passado deverá ser encarada como um exemplo presente para construir um futuro grandioso.



Canto IV – Episódio O Velho do Restelo ( estrofes 90 a 104)


O Velho do Restelo (canto IV, estrofes 94-104). O sentido do discurso atribuído ao Velho é bastante claro; não obstante, o episódio coloca alguns problemas quanto ao pensamento do poeta relativamente à questão tratada.  Os navios portugueses estão prestes a largar; esposas, filhos, mães, pais e amigos dos marinheiros apinham-se na praia (do Restelo) para dar seu adeus, envolto em muitas lágrimas e lamentos, àqueles que partiam para perigos inimagináveis e talvez para não mais voltar.

No meio desse ambiente emocionado, destaca-se a figura imponente de um velho que, com sua "voz pesada", ouvida até nos navios, faz um discurso veemente, condenando aquela aventura insana, impelida, segundo ele, pela cobiça-o desejo de riquezas, poder, fama.  Diz o velho que, para ir enfrentar desnecessariamente perigos desconhecidos, os portugueses abandonavam os perigos urgentes de seu país, ainda ameaçado pelos mouros e no qual já se instalava a desorganização social que decorreu das grandes navegações.

Segundo parece, o velho representa a opinião conservadora (alguns diriam "reacionária") da época - opinião da aldeia, do torrão natal, da vida segura, mas não heróica. Seria estranho que Camões se identificasse com esse tipo de atitude, pois, como observou J. F. Valverde, "não seria compreensível que compusesse uma epopéia para celebrar o que condenava como erro fatal".  Mas, segundo se pode inferir de diversos elementos do discurso do Velho, assim como do resto do poema, a opinião expressa no admirável discurso não era inteiramente rejeitada por Camões, por mais que ele fosse empolgado pelo empreendimento marítimo de seu país.  Como o Velho do Restelo pensavam muitos naqueles tempos, assim como muitos pensam hoje em relação a assuntos semelhantes (como a conquista espacial ou a manipulação genética, por exemplo).

Gil Vicente, que tratou de assunto semelhante, em chave cômica, no "Auto da Índia", poderia subscrever as palavras daquele "velho de aspecto venerando".  O discurso do Velho contém uma condenação enfática da guerra, de acordo com o ponto de vista do Humanismo, que era antibelicista. Mas o Velho, como Camões, abre exceção (sob a forma de concessão) para a guerra na África (lembremos que o poeta, no início e no fim do poema, recomenda enfaticamente a D. Sebastião que embarque nessa aventura).

Sabemos que havia, na época, uma corrente de opinião em Portugal que condenava a política ultramarina do país, direcionada desde D. João 3º em favor da Índia, com o abandono das conquistas africanas.  Portanto, o Velho do Restelo não é propriamente uma voz discordante a que o poeta concede um lugar em seu poema, representando nele simplesmente os rumores do povo ou o ponto de vista de um partido adversário da empresa que o poeta se punha a celebrar.

A fala do Velho é também a expressão de idéias camonianas, divididas entre o Humanismo pacifista e o belíssimo dos ideais da Cavalaria e das Cruzadas, cujo espírito muito influenciou a visão camoniana da missão de seu país.

O discurso do Velho do Restelo corresponde a um gênero antigo da literatura, cultivado desde os primórdios da poesia grega. Trata-se do gênero conhecido pelos gregos como propemptikón, ou seja, "adeus a um viajante que parte". 



O sonho de D. Manuel I Canto IV: Estrofes 74, 76.


Estas duas estrofes descrevem dois momentos subsequentes: em primeiro lugar, o sonho que o rei D. Manuel teve, no qual lhe apareceu o Rio Ganges para profetizar sobre Portugal, sendo que, mesmo depois de dar aos portugueses “dura guerra”, este grande povo lusitano iria dominar novas terras ultramarinas: “Mas, insistindo tu, por derradeiro. / Com não vistas vitórias, sem receio. / A quantas gentes vês, porás freio.”Em segundo lugar, a atitude imediata do rei, avisando os seus súbditos sobre os feitos gloriosos a eles reservados, o que os anima e faz partir de Lisboa em direcção ao Oriente, ávidos dessa glória, como se pode ler em “Determinam o náutico aparelho. / Pera que, com sublime coração, / Vá a gente que mandar cortando mares / A buscar novos climas, novos ares.” Repare-se na perífrase “náutico aparelho” (em vez de nau/caravela/barco) cuja expressividade é a de realce do meio por onde esse “aparelho” iria movimentar-se: o mar. 


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Mitificação do herói em "Os Lusíadas"


A presença de divindades mitológicas é uma constante ao longo de todo o poema que, curiosamente (ou não), começa com um consílio entre os deuses e termina com a Ilha dos Amores.
À primeira vista, tudo isso poderia parecer uma grande contradição com as convicções do poeta, que era não só assumidamente cristão, como ainda um grande apelador da expansão da Fé e do espírito de cruzada. Mas essa contradição era facilmente explicada pelo seu espírito renascentista; pela capacidade que os humanistas possuíam em conjugar aspetos que, para muitos, seriam simplesmente inconciliáveis.
Além disso, e segundo a opinião de muitos estudiosos, a mitologia estava apenas presente por uma questão de estética e erudição. Nada mais representava, não constituindo sequer uma ameaça aos postulados da Igreja cristã. Assim pensou o padre Bartolomeu Ferreira, que leu a obra na figura de censor da Inquisição, e a autorizou sem achar “cousa alguma escandalosa”.
Na atualidade, porém, reconhece-se que o valor da mitologia é muito mais profundo e significativo, não podendo ela continuar a ser encarada como mera partícula decorativa. Os deuses pagãos têm uma vida própria e autónoma; têm a capacidade de intervir e influenciar o destino dos homens; possuem, em suma, o estatuto de verdadeiras personagens principais no contexto do poema. Basta analisar o confronto entre Baco e Vénus, cada qual com os seus aliados, para compreendermos o carácter e a profundidade que estas figuras assumem no desenrolar da narrativa. 


Mitologia em "Os Lusíadas"


A presença de divindades mitológicas é uma constante ao longo de todo o poema que, curiosamente (ou não), começa com um consílio entre os deuses e termina com a Ilha dos Amores.
À primeira vista, tudo isso poderia parecer uma grande contradição com as convicções do poeta, que era não só assumidamente cristão, como ainda um grande apelador da expansão da Fé e do espírito de cruzada. Mas essa contradição era facilmente explicada pelo seu espírito renascentista; pela capacidade que os humanistas possuíam em conjugar aspetos que, para muitos, seriam simplesmente inconciliáveis.
Além disso, e segundo a opinião de muitos estudiosos, a mitologia estava apenas presente por uma questão de estética e erudição. Nada mais representava, não constituindo sequer uma ameaça aos postulados da Igreja cristã. Assim pensou o padre Bartolomeu Ferreira, que leu a obra na figura de censor da Inquisição, e a autorizou sem achar “cousa alguma escandalosa”.
Na atualidade, porém, reconhece-se que o valor da mitologia é muito mais profundo e significativo, não podendo ela continuar a ser encarada como mera partícula decorativa. Os deuses pagãos têm uma vida própria e autónoma; têm a capacidade de intervir e influenciar o destino dos homens; possuem, em suma, o estatuto de verdadeiras personagens principais no contexto do poema. Basta analisar o confronto entre Baco e Vénus, cada qual com os seus aliados, para compreendermos o carácter e a profundidade que estas figuras assumem no desenrolar da narrativa. 


Estrutura externa de "Os Lusíadas"


O poema está escrito em versos decassílabos, com predomínio do decassílabo heróico (acentos n 6ª e 10ª sílabas). É considerado o metro mais adequado á poesia épica, pelo seu ritmo grave e vigoroso. Surgem também alguns raros exemplos de decassílabo sáfico (acentos na 4ª, 8ª e 10ª sílaba).

· As estrofes são de oito versos e apresentam o seguinte esquema rimático – “ab ab ab cc” ( a este tipo estrófico costuma chamar-se oitava rima, oitava heróica ou oitava italiana);

· As estrofes estão distribuídas por 10 cantos. O número de estrofes por canto vario de 87, no canto VII, a 156 no canto X. No seu conjunto, o poema apresenta 1102 estrofes.



Estrutura interna de "Os Lusíadas"


Os Lusíadas constroem-se pela sucessão de quatro fontes:

· Proposição – parte introdutória, na qual o poeta anuncia o que vai cantar (Canto I, estrofes 1-3);

· Invocação – pedido de ajuda as divindades inspiradores (A principal invocação é feita as Tágides, no canto I, estrofes 4 e 5, ás Ninfas do Tejo e do Mondego, no canto VII 78-82 e, finalmente, a Calíope, no Canto X, estrofe 8);

· Dedicatória – oferecimento do poema a uma personalidade importante. (Esta parte, facultaria, pode ter origem nas Geórgicas de Virgilio ou nos Fastos de Ovídio; não existe em nenhuma das epopeias da Antiguidade);

· Narração – parte que constitui o corpo da epopeia; a narrativa das acções levadas a cabo pelo protagonista. (Começando no Canto I, estrofe 19, só termina no Canto X, estrofe 144, apresentando apenas pequenas interrupções pontuais).